Cubo Mágico

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Não tinha naqueles olhos do velho de longas e mal cuidadas barbas brancas apenas o esperar do metrô

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O vento daquela modernidade toda chegou forte não ao cabelo ressequido, mas à barba ainda mais acabada. Nunca acharia normal aquilo tudo acontecendo debaixo da terra, com um trenzão de metal correndo e correndo sem a gente saber por onde anda. O velho fechou os olhos com o primeiro sopro; não era preciso na verdade. Os óculos de aro grosso que um dia já foram beges, amarronzados mas ainda assim translúcidos, e hoje muito amarelecidos pela fumaça do tabaco, protegiam os olhos. Olhos vermelhos, pequenos, com algo latejando, urgente. Não tinha naqueles olhos do velho de longas e mal cuidadas barbas brancas apenas o esperar do metrô.

Aquele bichão parou, as pessoas dificultaram a entrada. Sabia lá atrás que a humanidade chegaria a um ponto em que ninguém se daria conta de que os outros existem. Mas nunca achou que viveria para chegar próximo disso. Apertou forte dentro da mão as duas alças de plástico da sacola de supermercado. Sacolas também amareladas, mas industrialmente. Ouviu uma campainha chata que sabia ser o último instante para se misturar àquela gente toda. Se apressou e conseguiu entrar. Um poste de metal frio o salvou do desequilíbrio repentino, mas o meio ambiente não ajudava. Logo um sopro gelado voltou a incomodar os olhos protegidos pelos grandes óculos. Por que essa gente precisa de tanto vento?

Por fim deu uns passos e achou uma cadeira vaga. Era cinza, mas o velho mal ligava para isso. Não conhecia ninguém no vagão de paredes amareladas, ah, isso antigamente não aconteceria. O sr. Joaquim, cobrador, o cumprimentaria, assim como d. Matilde, que sempre estava por ali no mesmo horário com aquele vestido sempre do mesmo corte mas com cores diferentes e aquele calcanhar alvo. Até o jovem Robertinho devia se lembrar da fraqueza da moça, que como Aquiles arrepiava ao ser tocada uns três centímetros acima dos pés. Estava na cara dela, o velho, então jovem, via. Bom dia, diriam. Bom dia.

Percebeu que a sacola do supermercado já escorregava nas mãos apertadas, molhada pelo suor das mãos mesmo com aquele ar seco todo que a envolvia. O trem parou. As portas se abriram de novo, todo mundo se empurrou, e o velho baixou os olhos vermelhos para o saco de plástico amarelo. Não tinha nada lá. Ou parecia não ter, já que de tão leve mal era preciso força e o saco balançava com o jato de ar que chegava entre os joelhos do velho. Aqueles olhos tinham mais do que a espera pelo metrô, que o cansaço da rotina, que o enfado da viagem embaixo da terra. Abriu o saco, tirou dois pedaços de papel com imagens amareladas.

Estava tremendo um pouco, mas podia ser apenas da idade. Ajeitou os óculos. Puxou os papéis para mais perto e os olhos avermelharam-se um tanto mais. Viu de um lado do papel com bordas brancas uma garota, garotinha, só o busto na fotografia, a gola e o colo cobertos pelo vestido xadrez. Cabelos negros e presos e um olhar terno, como que escondendo um segredo que só o fotógrafo sabia. Olhava direto para a câmera e, agora, para o velho de barba longa. Ao lado da garota, aparecia um velho, de barba longa, com a aparência de quem não entende o vento daquela modernidade toda. Parou. O trem andou, parou, andou novamente. Os olhos lacrimejaram, mas podia ser só reação ao vento seco e gelado.

O papel de trás foi se revelando lentamente. Os dedos velhos pareciam também precisar de óculos para sentir melhor, já que tateavam a fotografia como que para reconhecer o que estava ali gravado. A mesma menina do segredo apareceu no outro papel, que também tinha borda branca, essas que os fotógrafos pouco criativos vendem por uns R$ 10 aos clientes que nada sabem de computação. A menina, o mesmo vestido com gola xadrez, o mesmo segredo. Mas ao lado a barba havia desaparecido. Os olhos vermelhos deram lugar aos mais esbranquiçados que já vira. Mas, engraçado, era o mesmo nariz, sob sobrancelhas aparadas, cabelo rente e uma boina dessas de militar. A roupa também era de militar, um pracinha talvez, como é que se chamavam mesmo, perguntou a si mesmo o velho. Eram pracinhas, isso mesmo. Sentiu que os pensamentos daquele rapaz na foto eram muito ingênuos, tão despreparados para prever que as dores sempre acabam, que as maiores qualidades de um homem passariam a ser a velocidade com que ele entra num vagão, que as sacolinhas de plástico de supermercado, antes tão úteis, seriam perseguidas por um pessoal que diz querer salvar o mundo amarelado.

O mundo não era mais do velho de óculos. Espirrou com o vento.

Written by Lucas Pretti

julho 22, 2008 às 1:32

Publicado em Crônicas

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